A finitude da vida e a vulnerabilidade do corpo e da mente são signos da nossa humanidade, o destino comum que iguala a todos. Representam, a um só tempo, mistério e desafio. Mistério, pela incapacidade humana de compreender em plenitude o processo da existência. Desafio, pela ambição permanente de domar a morte e prolongar a sobrevivência. A ciência e a medicina expandiram os limites da vida em todo o mundo. Porém, o humano está para a morte. A mortalidade não tem cura. É nessa confluência entre a vida e a morte, entre o conhecimento e o desconhecido, que se originam muitos dos medos contemporâneos. Antes, temiam-se as doenças e a morte. Hoje, temem-se, também, o prolongamento da vida em agonia, a morte adiada, atrasada, mais sofrida. O poder humano sobre Tanatos[2].
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As reflexões aqui desenvolvidas têm por objeto o processo de terminalidade da vida, inclusive e notadamente, em situações nas quais os avanços da ciência e da tecnologia podem produzir impactos adversos. Seu principal propósito é estudar a morte com intervenção à luz da dignidade da pessoa humana, com vistas a estabelecer alguns padrões básicos para as políticas públicas brasileiras sobre a matéria. Para tanto, investe-se um esforço inicial na uniformização da terminologia utilizada em relação à morte com intervenção. Na sequência, procura-se produzir uma densificação semântica do conceito de dignidade da pessoa humana. Por fim, são apresentados e debatidos alguns procedimentos destinados a promover a dignidade na morte, alternativos à eutanásia e ao suicídio assistido.
As ideias aqui desenvolvidas, como se verá, valorizam a autonomia individual como expressão da dignidade da pessoa humana e procuram justificar as escolhas esclarecidas feitas pelas pessoas. Nada obstante isso, a morte com intervenção, no presente trabalho, não foi confinada a um debate acerca da permissão ou proibição da eutanásia e do suicídio assistido. O refinamento da discussão permite que se busque consenso em torno de alternativas moralmente menos complexas, antes de se avançar para o espaço das escolhas excludentes. O fenômeno da medicalização da vida pode transformar a morte em um processo longo e sofrido. A preocupação que moveu os autores foi a de investigar possibilidades, compatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro, capazes de tornar o processo de morrer mais humano. Isso envolve minimizar a dor e, em certos casos, permitir que o desfecho não seja inutilmente prorrogado. Ainda um último registro introdutório: as considerações sobre a morte com intervenção, aqui lançadas, referem-se tão-somente aos casos de pessoas em estado terminal ou em estado vegetativo persistente.
A retirada de suporte vital (RSV), a não-oferta de suporte vital (NSV) e as ordens de não-ressuscitação ou de não-reanimação (ONR) são partes integrantes da limitação consentida de tratamento. A RSV significa a suspensão de mecanismos artificiais de manutenção da vida, como os sistemas de hidratação e de nutrição artificiais e/ou o sistema de ventilação mecânica; a NSV, por sua vez, significa o não-emprego desses mecanismos. A ONR é uma determinação de não iniciar procedimentos para reanimar um paciente acometido de mal irreversível e incurável, quando ocorre parada cardiorrespiratória[16]. Nos casos de ortotanásia, de cuidado paliativo e de limitação consentida de tratamento (LCT) é crucial o consentimento do paciente ou de seus responsáveis legais, pois são condutas que necessitam da voluntariedade do paciente ou da aceitação de seus familiares, em casos determinados. A decisão deve ser tomada após o adequado processo de informação e devidamente registrada mediante TCLE.
Essa postura legislativa e doutrinária pode produzir consequências graves, pois, ao oferecer o mesmo tratamento jurídico para situações distintas, o paradigma legal reforça condutas de obstinação terapêutica e acaba por promover a distanásia. Com isso, endossa um modelo médico paternalista, que se funda na autoridade do profissional da medicina sobre o paciente e descaracteriza a condição de sujeito do enfermo. Ainda que os médicos não mais estejam vinculados eticamente a esse modelo superado de relação, o espectro da sanção pode levá-los a adotá-lo. Não apenas manterão ou iniciarão um tratamento indesejado, gerador de muita agonia e padecimento, como, por vezes, adotarão algum não recomendado pela boa técnica, por sua desproporcionalidade. A arte de curar e de evitar o sofrimento se transmuda, então, no ofício mais rude de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condições. Não é apenas a autonomia do paciente que é agredida. A liberdade de consciência do profissional da saúde pode também estar em xeque[21].
A decisão marca o encontro, no Brasil, de dois fenômenos do nosso tempo: a medicalização[24] e a judicialização[25] da vida. Ambos potencializados por um terceiro fenômeno: a sociedade espetáculo, em que os meios de comunicação transmitem, em tempo real, ao vivo e em cores, dramas como os de Terri Schiavo (EUA)[26], Hannah Jones (Reino Unido)[27] ou Eluana (Itália)[28]. O pronunciamento judicial suspensivo da Resolução exibe, igualmente, o descompasso entre ordenamento jurídico e a ética médica. E, no mundo pós-positivista, de reaproximação entre o Direito e a Ética, este é um desencontro que deve ser evitado. A propósito, deve-se registrar que a orientação do Conselho Federal de Medicina está em consonância com as da Associação Médica Mundial (AMM), as da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e as do Conselho Europeu e da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) [29]. E, também, com o tratamento jurídico adotado em países como Estados Unidos da América, Canadá, Espanha, México, Reino Unido, França, Itália, Suíça, Suécia, Bélgica, Holanda e Uruguai[30].
O prolongamento sacrificado da vida de pacientes com doenças para as quais a medicina desconhece a cura ou a reversão, contra a sua vontade ou de seus responsáveis legais, enseja dor, sofrimento, humilhação, exposição, intrusões corporais indevidas e perda da liberdade. Entram em cena, então, outros conteúdos da própria dignidade. É que a dignidade protege, também, a liberdade e a inviolabilidade do indivíduo quanto à sua desumanização e degradação. É nesse passo que se verifica uma tensão dentro do próprio conceito, em busca da determinação de seu sentido e alcance diante de situações concretas. De um lado, a dignidade serviria de impulso para a defesa da vida e das concepções sociais do que seja o bem morrer. De outro, ela se apresenta como fundamento da morte com intervenção, assegurando a autonomia individual, a superação do sofrimento e a morte digna[31].
A dignidade da pessoa humana vem inscrita na Constituição brasileira como um dos fundamentos da República (art. 1º, III). Funciona, assim, como fator de legitimação das ações estatais e vetor de interpretação da legislação em geral. Na sua expressão mais essencial, dignidade significa que toda pessoa é um fim em si mesma, consoante uma das enunciações do imperativo categórico kantiano[39]. A vida de qualquer ser humano tem um valia intrínseca, objetiva. Ninguém existe no mundo para atender os propósitos de outra pessoa ou para servir a metas coletivas da sociedade. O valor ou princípio da dignidade humana veda, precisamente, essa instrumentalização ou funcionalização de qualquer indivíduo. Outra expressão da dignidade humana é a responsabilidade de cada um por sua própria vida, pela determinação de seus valores e objetivos. Como regra geral, as decisões cruciais na vida de uma pessoa não devem ser impostas por uma vontade externa a ela[40]. No mundo contemporâneo, a dignidade humana tornou-se o centro axiológico dos sistemas jurídicos, a fonte dos direitos materialmente fundamentais, o núcleo essencial de cada um deles.
Registre-se que a adoção do critério da dignidade como heteronomia enfrentaria ainda uma particular dificuldade. É que, no seu interior, há duas proposições que competem entre si e, de certa forma, neutralizam-se. De um lado, a que valoriza a preservação da vida humana como um bem em si; de outro, a proibição de impor aos indivíduos tratamento desumano ou degradante. Jano, com suas duas faces. Reitere-se, uma vez mais, que o pressuposto fático da tese aqui desenvolvida inclui a impossibilidade de cura, melhora ou reversão do quadro clínico, importando o tratamento em extensão da agonia e do sofrimento, sem qualquer perspectiva para o paciente. Em outros cenários, por certo, seria admissível a aplicação da dignidade como heteronomia[85]. Outro pressuposto relevante consiste na certeza do diagnóstico, do prognóstico e das alternativas existentes. O consentimento, por sua vez, deve ser aferido por padrões seguros, para que se tenha certeza de que as decisões foram tomadas de modo livre, consciente e esclarecido[86]. Relembre-se, por fim, que as condições para o exercício da liberdade são decisivas nesse contexto. Isso significa ausência de privações materiais, que abrange não apenas a despreocupação de ser um peso para os entes queridos, como também o acesso a sistemas adequados de saúde.
Pesquisas desenvolvidas em países que oficialmente implementaram fórmulas intermediárias permitiram constatar que o desejo de morrer mediante atos de eutanásia e de suicídio assistido foi substancialmente reduzido[87]. Portanto, antes de trazer para o topo da agenda o tratamento dessas outras duas alternativas de morte com intervenção, deve-se investir energia em um consenso possível em relação à ortotanásia, que envolve escolhas morais menos drásticas[88]. Enfatize-se bem: à luz das premissas filosóficas aqui assentadas em relação à dignidade da pessoa humana, a eutanásia e o suicídio assistido são possibilidades com elas compatíveis. Porém, em lugar de um debate público que produziria inevitavelmente vencedores e vencidos, optou-se por construir uma solução que possa ser aceita por todos. A seguir, breve detalhamento das proposições centrais em relação ao tema, que são aqui reputadas como plenamente compatíveis com a Constituição e a legislação em vigor, podendo ser desde já concretizadas. São elas: a) a limitação consentida de tratamento; b) o cuidado paliativo e o controle da dor; c) os Comitês Hospitalares de Bioética; e d) a educação dos profissionais e a informação do público. 2ff7e9595c
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